“Não sou muito chegado a brinquedo”, diz o menino. Ele não tem dez anos de idade, mas fala com desenvoltura sobre as tecnologias de seu terceiro celular. Essa é uma das passagens alarmantes de “Criança, a alma do negócio”, documentário de 2008 dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisti sobre os impactos do consumismo no desenvolvimento infantil.
Ontem, 16 de março, o Projeto Criança e Consumo exibiu o filme mais uma vez demonstrando a sua atualidade. A plateia, composta em sua maioria de estudantes de publicidade da PUC de São Paulo, se reuniu à noite no Teatro Tuca para assistir a mães, professores, especialistas e crianças falarem sobre como o consumo tem cada vez mais importância na inserção social de meninos e meninas que mal entendem o seu lugar no mundo.
A sessão foi seguida de um debate com os conselheiros do Criança e Consumo Marcelo Sodré, procurador do Estado de São Paulo, e Ladislau Dowbor, economista, e com Silvia Vignola, do Idec. “Estamos em um segundo momento da sociedade de consumo, ainda mais perigoso. Antes os produtos eram marcadores sociais, o que já era bastante complicado, pois as pessoas só se sentiam inseridas socialmente se possuíssem determinados bens. Agora atingimos uma nova fase, ainda mais preocupante, em que a nossa subjetividade começa a se dar por meio desses bens. Ou seja, as pessoas dependem do consumo para se sentirem felizes e estão extremamente individualistas”, afirmou Marcelo. “O ingresso na sociedade se dá pela cidadania e não pelo consumo”, comentou.
Hoje a construção de valores e princípios está cada vez mais dependente de bens de consumo — o que, além de insustentável, atinge profundamente as relações sociais. Para Ladislau Dowbor, a maneira como o mercado se comunica com seus consumidores agrava esses problemas e é pior quando trata do público infantil. “A criança é dramaticamente solitária na sociedade atual. E ainda é bombardeada por publicidade. É uma covardia”, disse Ladislau ao comentar sobre os impactos da publicidade na formação de crianças, um público hipervulnerável diante dos apelos de consumo do mercado.
Liberdade de expressão
Os debatedores defenderam veementemente a regulação publicitária no Brasil, especialmente de ações que visam o público infantil. E todos esclareceram para a plateia: regular não é ferir a liberdade de expressão. Marcelo Sodré, que também é professor de Direito da PUC, explicou que a publicidade é uma atividade comercial, que tem como fim vender e divulgar produtos. Portanto, não está inserida no conceito de liberdade de expressão, que contempla ideias e opiniões relacionadas a artes, conhecimento científico, religião e informação. Ladislau completou: “A publicidade de hoje não informa. Pelo contrário, ela deforma a informação”.
Silvia Vignola, que vem acompanhando os debates sobre a regulação da Anvisa de publicidade de alimentos com alto teor de açúcar, gorduras e sal, lembrou que a necessidade de criar regras e parâmetros para a comunicação mercadológica é uma questão urgente, pois interfere em problemas de saúde pública. “A obesidade já atinge 15% das crianças brasileiras. É preciso pensar nos gastos público gerados pelo consumo excessivo de alimentos ultraprocessados, que na vida adulta podem resultar em diabetes, doenças cardiovasculares e diversos tipos de câncer”, explicou.
Questionados pelos estudantes se não havia um exagero em responsabilizar o mercado publicitário pelos graves impactos do consumismo infantil, Marcelo, Ladislau e Silvia afirmaram que existe um conjunto de fatores que determinam essa questão, mas que não se pode ignorar a forte influência da publicidade. E que regular a atividade é um passo fundamental para a transformação da realidade atual.